Por Flávia Médici

Na noite de 30 de abril de 1981, acontecia no Riocentro, na Barra da Tijuca, um evento que marcava a celebração ao Dia do Trabalho, reunindo grandes artistas da música brasileira. Mas a noite de celebração não terminaria em festa, pouco depois das 21h daquela noite, uma explosão no estacionamento do Riocentro mudou a história.

O carro em que estavam o capitão Wilson Dias Machado e o sargento do Guilherme Pereira do Rosário- Agência O Globo

Rio de Janeiro capital, bairro de Jacarepaguá, zona oeste da cidade. Era noite de 30 de abril de 1981. 

Cerca de vinte mil pessoas estavam presentes no centro de convenções Riocentro para participar do evento que marcava a celebração do primeiro de maio, o Dia do Trabalho. No palco, mais de 20 vozes da música brasileira se apresentavam, entre elas Elba Ramalho, Chico Buarque, Luiz Gonzaga, Gonzaguinha, Alceu Valença, Clara Nunes, Ney Matogrosso e Bete Carvalho, que cantariam até as primeiras horas da madrugada do dia um de maio.

O evento era organizado pelo Centro Brasil Democrático, ligado ao Partido Comunista Brasileiro que operava na clandestinidade naqueles tempos da ditadura militar. O show comemorativo do Dia do Trabalho trazia consigo um grande simbolismo da época. O Brasil, governado pelo General João Baptista Figueiredo, caminhava por um processo de abertura política rumo à democracia. Vozes que por anos foram caladas pela censura do governo militar poderiam finalmente cantar e se expressar.

Mas a noite de celebração não terminaria em festa.

Era Alceu Valença que se apresentava por volta das nove e vinte da noite quando um carro esportivo do modelo Puma GTE cinza-metálico de placa OT-0297 explode no estacionamento do Riocentro. A explosão inflou o teto do carro e lançou as portas para longe. Dentro dele estavam dois oficiais do exército: o capitão Wilson Luís Chaves Machado, no banco do motorista, que fica gravemente ferido mas sobrevive, e o sargento Guilherme Pereira do Rosário, no banco do passageiro, que tem seu corpo dilacerado e morre na hora da explosão.

O Puma usado pelos militares para o atentado no Riocentro – Ricardo Chaves / VEJA

Dez minutos depois, uma nova bomba explode na subestação de força do centro de convenções, mas dessa vez não deixa nenhuma vítima.

As primeiras revelações divulgadas pela imprensa provocam um grande impacto. Os oficiais do exército que estavam dentro do Puma seriam os responsáveis pelo ataque a bombas no Riocentro.

A notícia se transforma numa verdadeira crise para o exército e abala as estruturas políticas do país. Por que dois oficiais militares estariam com bombas num evento de manifestação papular?

A verdade é que o cenário político do Brasil no início dos anos 80 era complexo e o país enfrentava uma grande encruzilhada. O antecessor do então presidente João Figueiredo, o general Ernesto Geisel, havia iniciado a abertura política brasileira. Prometia que de forma lenta, gradual e segura avançaria nosso país rumo à democracia. João Figueiredo entrou no poder garantindo que seguiria com os avanços para uma abertura democrática.

Porém, exatamente no dia 30 de abril de 1981, ficou evidente para o Brasil que muitos dos integrantes do Exército estavam contra a democracia. O atentado do Riocentro, 40 anos após ocorrido, segue sem culpados e é conhecido como um dos segredos mais bem guardados da ditadura militar brasileira.

O atendado

Jornal da Tarde – Acervo/Estadão

O atentado do Riocentro foi apenas um caso de ataque com bombas do início dos anos 80 dentre tantos outros que vinham acontecendo no Rio de Janeiro. Os alvos eram bancas de revistas, sedes de jornais e entidades que faziam oposição ao regime militar. No início, esses ataques eram feitos na calada da noite, sem vítimas. Mas, com o passar do tempo, a violência claramente subia de tom.

O mais grave deles até então havia acontecido em agosto de 1980 na sede da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil) na cidade do Rio de Janeiro. Um envelope com uma bamba dentro dele havia sido endereçado ao Presidente da entidade. Lyda Monteiro, secretária e uma das funcionárias mais antigas da instituição, abriu a carta e morreu com a explosão.

O atentado do Riocentro foi o último de uma série de mais de 30 bombas lançadas em diferentes ataques na cidade, e como todos os outros, ninguém foi responsabilizado.

Para ir mais a fundo nesse caso preciso explicar um pouco sobre o contexto histórico que o Brasil vivia. Era ditadura militar. Desde 1964 os brasileiros eram governados por um regime autoritário que estabeleceu a censura à imprensa, restrições aos direitos políticos e perseguição policial aos opositores do regime, para citar aqui apenas algumas das liberdades tolidas durante esse período.

Em 1974, com o Presidente Ernesto Geisel, o Brasil começa timidamente a dar seus primeiros passos rumo a democracia. Pertencente a uma ala mais moderada do Exército, Geisel extinguiu o AI-5 – conhecido como o Ato Institucional mais duro do período militar – e concedeu anistia política a várias pessoas exiladas em outros países, principalmente artistas e políticos.

O gerenal João Figueiredo em 1979, ano em que se tornou presidente – Antonio Moreno/ Agencia O GLOBO

Seu sucessor ao posto presidencial foi João Figueiredo, que quando assumiu o poder prometeu ir em frente com os planos do país de caminhar rumo à democracia. Ele declarou, abre aspas: “Prendo quem for contra a abertura. É para abrir mesmo. E quem quiser que não abra, eu prendo, arrebento”, fecha aspas.

O recado estava dado. Uma promessa que mais repercutiu como uma ameaça, em pouco tempo seria testada pela ala mais conservadora do exército, os conhecidos como Linha Dura, que eram contra essa abertura política e o fim da ditadura. 

A essa altura do regime militar, aquela figura da milícia esquerdista armada opositora ao regime não existia mais. A esquerda já havia abandonado a guerrilha. Não havia mais como levá-la adiante, fosse por falta de apoiadores, já que muitos haviam sido mortos ou exilados, fosse por falta de recursos. A força de oposição ao governo no início da década de 80 estava na voz e nos atos dos próprios cidadãos, os civis, que pouco a pouco se manifestavam a favor do estado democrático.

O fim da ditadura representava para uma parte dos militares, aqueles das alas mais radicais do Exército, uma ameaça. O receio era que houvesse uma grande revanche com a vinda da democracia e a possibilidade dos partidos de esquerda chegarem ao poder.

Sem uma figura inimiga que representasse um perigo evidente, esses militares mais radicais estavam dispostos a inventar inimigos para justificar uma volta à repressão mais violenta.

Bernardo Pasqualette, advogado e autor do livro “Me esqueçam – Figueiredo: A Biografia de uma Presidência” disse ao jornal Folha de São Paulo, abre aspas: “Travava-se uma guerra particular nos subterrâneos do regime. Seus detalhes eram conhecidos por poucos, mas sua essência tinha como face visível a série de atentados que colocavam em xeque a própria autoridade presidencial. A abertura política lenta, gradual e segura, iniciada no governo Ernesto Geisel, estava sob ameaça”, fecha aspas.

É diante desse panorama sombrio que chega a noite de 30 de abril de 1981. As bombas explodem no Riocentro, uma delas dentro de um carro com dois oficiais do Exército. Quais os motivos das bombas e por que elas estavam dentro do carro com os militares?

Um Inquérito Policial Militar foi aberto para investigar o caso. No dia 30 de junho, dois meses após a explosão, vem a conclusão: os dois oficiais, que estariam no evento do Riocentro a mando do Exército em um serviço secreto, foram atacados de surpresa por comunistas inimigos do regime.

O encerramento do caso foi anunciado em uma coletiva de imprensa pelo responsável do inquérito, o Coronel Job Lorena Sant’Anna, sem qualquer direito a perguntas por parte dos jornalistas. Sem apontar nomes de culpados, acusa como mandante do atentado a extrema esquerda. No dia dois de outubro, ainda sem os autores da ação, o Superior Tribunal Militar decide arquivar o caso.

Porém, a essa altura das investigações muitos pontos não se conectavam com a conclusão dada pela Policial Militar. Por mais que se tentasse mudar os rumos dos fatos, eles levavam a uma conclusão completamente diferente.

O plano: um ataque terrorista.

O alvo: a festa em comemoração ao dia do trabalhador, que era vista pela extrema direita como provocação dos esquerdistas ao regime militar.

Os responsáveis por executar o ataque: dois agentes do DOI Codi, órgão de inteligência do exército e de repressão da ditadura militar.

A intenção: culpar grupos de esquerda pelo ataque e assim frear o processo de abertura política do Brasil.

Mas um imprevisto mudou o rumo dessa história: a bomba explodiu antes da hora.

A cena descrita por testemunhas daquela noite relata o seguinte: ao ver seu companheiro, o sargento Guilherme do Rosário morto, o capitão Wilson Machado sai do carro gravemente ferido em busca de socorro com suas vísceras expostas. Caminha cerca de 150 metros e sentado espera por vinte minutos até conseguir socorro. É encaminhado para o hospital Miguel Couto, na zona Sul do Rio de Janeiro. Nessa mesma noite começa um grande movimento de policiais militares no hospital.

No dia seguinte, o então secretário de segurança do Rio de Janeiro, o General Waldyr Muniz, divulga uma versão pronta sobre o ataque. Abre aspas “Infelizmente, lamentavelmente, desgraçadamente, esses dois, quando saiam do estacionamento, dando uma marcha ré, o sargento (…) notou um objeto estranho, pegou, explodiu. Você acha que alguém vai se suicidar?” fecha aspas.

O inquerito policial-militar da epoca tentou livrar o sargento e o capitao e culpou grupos extramistas – Agencia O GLOBO

Meses depois o inquérito seguiria sustentando essa versão, afirmando que a bomba teria sido colocada no Puma por um grupo de esquerda, imprensada entre o banco e a porta do carona enquanto os agentes do Exército estavam fora do carro. Mas investigações paralelas provaram que pelo tamanho da bomba que explodiu, ela não caberia no vão entre o banco e a porta, como relata a perícia. A porta simplesmente não fecharia.

Uma das suspeitas levantadas na ocasião era de que a bomba explodiu por um acidente de trabalho provocado pelo sargento Guilherme do Rosário, que era especialista em explosivos e que morreu na ocasião. Mas se comprovada essa hipótese, uma importantíssima questão surgiria – e talvez sem uma boa resposta por parte dos militares: por que oficiais do exército estariam com bombas no evento de manifestação popular?

As evidências mostravam que a bomba estava dentro do carro junto com os oficiais. As marcas da destruição no veículo, a posição do corpo que morreu com a explosão, o abdômen e a genitália dilacerados não negavam que a bomba não só estava dentro do carro, mas também sob as pernas do sargento.

Além dessa peça fora do quebra-cabeça, tantas outras apareceram durante o decorrer das investigações que colocam em xeque a conclusão dada pela polícia. Vamos citar algumas delas:

  • Suspensão do policiamento do show em cima da hora. Na manhã do dia do festival no Riocentro chega uma ordem vinda de Brasília enviada pelo então comandante-geral da Polícia Militar do Rio de Janeiro, o General Nilton Cerqueira, que suspende o policiamento militar no evento. Ele alega que a suspensão ocorreu pois o show era de iniciativa privada e por isso caberia aos organizadores arcar com a responsabilidade da segurança. Foi a primeira vez que isso aconteceu, segundo testemunhas.
  • Falhas na segurança interna do Riocentro. A perícia feita no local indicou que 23 das 28 saídas de emergência do centro de convenções estavam trancadas. No caso de uma emergência, como uma bomba, essas portas trancadas certamente tornariam a tragédia ainda maior.
  • Remanejamento de vigilantes. Naquela noite, sem que ninguém saiba explicar o motivo, houve um grande remanejamento de funções de vigilantes funcionários do Riocentro. O chefe de segurança do local, por exemplo, foi colocado para tomar conta da catraca. Movimentações um tanto quanto estranhas e nada comuns na equipe.

Por mais que fatos contestassem o laudo da perícia do Exército, a conclusão que naquele ano de 1981 encerrou o caso teve que ser engolida pelo povo brasileiro: sargento e capitão foram vítimas de uma emboscada comunista.

A reabertura do caso

Foi apenas em 2014, 33 anos após a explosão das bombas no Riocentro, que o Ministério Público Federal do Rio de Janeiro denunciou seis nomes ligados ao Exército por envolvimento no atentado, isso após dois anos de investigações. 

Entre eles está o hoje coronel reformado Wilson Machado, sobrevivente da bomba. Em depoimento para o Ministério Público Federal em dezembro de 2013 e janeiro de 2014 ele segue negando qualquer envolvimento no caso. Alega que estava no evento a serviço secreto enviado pelo Codi e que sua função era identificar pessoas que participavam do show para elaboração de futuros relatórios.

O capitão Wilson Machado, um dos seis suspeitos do atentado – Agência O GLOBO

Ao chegarem no Riocentro, disse que precisava usar o banheiro e é quando ele e o companheiro Guilherme saem do carro por alguns instantes. Segundo inquérito de 81, seria nesse momento que a bomba teria sido implantada no Puma.

Antônio Passos, procurador do Ministério Público Federal do Rio de Janeiro, comentou para uma matéria divulgada no Fantástico, na TV Globo, em fevereiro de 2014, assim que o caso foi decretado reaberto, abre aspas: “O inquérito conduzido logo após o atentado em 1981, a gente não tem dúvidas de que foi direcionado para que as conclusões não chegassem a descobrir nenhum dos autores do atentado. Peritos foram pressionados, testemunhas foram ameaçadas, provas foram suprimidas do local do crime. Então a gente não tem dúvidas de que a primeira investigação do Riocentro foi pressionada para que o caso fosse acobertado. Para que não se descobrisse a verdade”.

Os denunciados alegaram na época que o crime havia prescrito passado tantos anos do acontecimento e que além disso, estariam cobertos pela Lei de Anistia, o ato jurídico em que crimes políticos cometidos em determinado período são esquecidos.

Porém, os procuradores afirmaram que o crime não prescreveu pois foi praticado contra o país – e nesse caso, não prescreve. Além disso, não estariam cobertos pela Lei de Anistia, que acobertou crimes acontecidos entre 1961 e 1979. Nesse caso, em 1981, a lei simplesmente não cobre.

A ação chegou à terceira instância. Na primeira, a Justiça aceitou a denúncia, mas o Tribunal Regional Federal da segunda Região trancou o processo. O Ministério Público recorreu, então, ao Supremo Tribunal de Justiça. Mas em setembro de 2019, por 5 votos a 2, decidiu-se por negar a solicitação e manter o caso fechado.

Silêncio até hoje

Passaram-se 40 anos do Atentado do Riocentro. As investigações jamais chegaram aos culpados. O que sabe-se é que o show de comemoração do Dia do Trabalho daquele ano não parou. A programação chegou até o fim conforme estava previsto e Gonzaguinha, cantor que se apresentava ao final do evento, informou ao público que pessoas contra a democracia haviam jogado bombas no lado de fora para os amedrontar.

As investigações mostraram que oficiais do Exército de alto escalão teriam conhecimento do ataque, que nada fizeram para reprimi-lo ou ainda que facilitaram a entrada da bomba no Riocentro. 

O presidente João Figueiredo, que ao iniciar seu mandato como Presidente se mostrava tão valente em oprimir qualquer manifestação contra a abertura democrática, se aquietou diante dos fatos e não mostrou qualquer ação para buscar os culpados.

Até hoje, as testemunhas e envolvidos na explosão da bomba temem dar qualquer parecer sobre o que viram e o que sabem.

O atentado no Riocentro foi um ato restrito a um pequeno grupo de militares contra a democracia? Ou estavam envolvidos altos escalões do exército que planejavam os ataques e delegavam a seus encarregados a execução? O Presidente João Figueiredo tinha conhecimento do plano da bomba?

Perguntas como essas sem respostas fazem com que o atentado no Riocentro siga sendo um dos segredos mais bem guardados da ditadura militar brasileira.

Mas e você? Qual sua teoria? Nós fizemos um Episódio muito legal junto com o escritor, jornalista, editor e tradutor brasileiro Eduardo Bueno do canal Buenas Ideias sobre esse acontecimento em nosso Podcast : Espaço Indecifrável, confere aqui em baixo que ficou muito bom! 

Quem é Eduardo Bueno?

Eduardo Bueno é escritor, com mais de 30 livros publicados, jornalista, editor e tradutor. Com a coleção Brasilis, que reúne A viagem do descobrimentoNáufragos, traficantes e degredadosCapitães do Brasil e A coroa, a cruz e a espada, tornou-se o primeiro autor brasileiro a emplacar simultaneamente quatro títulos entre os cinco primeiros nas listas de mais vendidos dos principais jornais e revistas do país.

Redes sociais do Eduardo Bueno: