Por Flávia Médici

Cerca de 72 anos depois, cadáver encontrado na encosta de um dos cartões-postais do Rio de Janeiro continua a intrigar montanhistas – Reprodução/TV Globo

Rio de Janeiro, capital.

Composto pelos morros do Pão de Açúcar, da Urca e da Babilônia, emoldurado pelas águas calmas da baía de Guanabara, o Complexo do Pão de Açúcar é um dos cartões-postais mais conhecidos da capital carioca. Sua beleza natural única não demorou para atrair o investimento do turismo. Em 1912 foi inaugurado o primeiro teleférico do país, o terceiro do mundo, e hoje é considerado o teleférico mais antigo ainda em operação.

Subir o famoso bondinho do Pão de Açúcar, como ficou conhecido, é de fato uma experiência inesquecível. De cima dos seus 396 metros de altura se tem uma vista panorâmica e incrível do Rio de Janeiro e de Niterói.

A atração, que ganhou reconhecimento mundial, já recebeu visitas ilustres, como o cantor jamaicano Bob Marley, o físico Albert Einstein e o ex-presidente americano John Kennedy. Em 1977 foi a vez do famoso equilibrista Steven McPeak atrair multidões ao andar sobre os cabos de aço do bondinho e, em 1979, o morro foi usado como cenário do filme do 007.

Mas o que poucos sabem é que por trás do seu imponente paredão de granito, registrado nas inúmeras fotos dos turistas que visitam a capital fluminense, existe um mistério macabro sem solução.

O inicio de tudo

Era 19 de setembro de 1949.

Por volta das sete da manhã, cinco montanhistas se encontram na Praça General Tibúrcio, na Praia Vermelha, zona sul do Rio de Janeiro. O objetivo: escalar o Pão de Açúcar.

Uma fotografia da equipe registrada pouco antes da escalada – Clube Excursionista Carioca

Antônio Marcos de Oliveira, Laércio Martins, Patrick White, Ricardo Menescal e Tadeusz Hollup faziam parte do grupo da elite de escalada do Rio de Janeiro, o Clube Excursionista Carioca. O desafio traçado pela equipe para essa manhã era grande. Em vez de simplesmente optarem por uma das três trilhas já conhecidas para subir os quase 400 metros de altura do morro do Pão de Açúcar, abririam uma trilha inédita. Um caminho nunca antes percorrido, mais arriscado do que os até então já conhecidos e considerado um dos mais perigosos do Brasil.

Muitos desafios os aguardavam, mas mal eles sabiam que nem todo o conhecimento técnico e experiência que tinham seriam suficientes para prepará-los para o que estava prestes a acontecer.

A subida era complexa e íngreme. Alcançados os mais de 100 metros de altura, por volta das onze e meia da manhã, passadas quatro horas de escalada, o grupo está numa das partes mais verticais da trilha. Entre dois paredões de pedras que formam um túnel estreito, os alpinistas precisam percorrer o caminho alternando pernas e braços entre as duas paredes paralelas. A cada novo passo, o túnel se estreita mais, trazendo a sensação de ficar literalmente entalado nele.

É quando Antônio Marcos de Oliveira, o caçula do grupo com seus 18 anos, se depara com uma silhueta. Preso pela garganta dentro da fenda estreita estava um corpo humano.

O cadáver, com cabelos longos e lisos, cerca de um metro e sessenta de altura e vestido com um suéter não parecia ter sofrido qualquer agressão ou acidente. Não estava nem mesmo em estado de putrefação, apodrecendo. Com seu rosto e corpo praticamente intactos, ele estava mumificado.

O caso perante a mídia

Em depoimento para o documentário Cinquentona Gallotti, de 2004, Marcos de Oliveira se lembra do exato instante em que descobriu o corpo, abre aspas: “Quando eu subi, eu fiquei ao lado do cadáver, e quando o vento bateu mais forte, o cabelo dele, que era enorme, pousou no meu ombro. Aí que eu olhei e vi que era uma pessoa”.

Antes mesmo de começarem a subida, ainda na clareira de acesso à trilha, Tadeusz Hollup havia encontrado um sapato de mulher jogado na mata. Estava deteriorado, velho, parecia que estava ali fazia muito tempo.

Em entrevista para o Esporte Espetacular de 22 de outubro de 2017, Tadeusz conta, abre aspas: “Eu encontrei um sapato de mulher e disse ‘olha, um sapato de mulher’, mas não ligamos muito para aquilo, jogamos o sapato fora e continuamos a nossa subida”.

O grupo, na ocasião, até brincou. Disseram que, quem sabe, encontrariam a dona dos sapatos em cima do morro. Era já um sinal.

Assustados com o descobrimento do cadáver, decidiram abandonar o ousado plano da subida imediatamente. Deviam avisar as autoridades. No dia seguinte eles estavam de volta, dessa vez acompanhados de policiais, bombeiros, jornalistas e médicos legistas. Subiram novamente até o local onde estava o corpo, o amarraram, o tiraram do vão entre as rochas e o levaram até o IML, Instituto Médico Legal.

A notícia não demorou para se espalhar e o misterioso corpo encontrado no Pão de Açúcar logo estampava as capas de jornais de todo o Brasil. De quem era aquele cadáver e como ele havia chegado ali, em um local tão remoto, eram algumas das perguntas sem respostas que surgiam e incomodavam a todos.

A trilha, até onde se tinha conhecimento, jamais havia sido explorada. Aquele grupo de montanhistas era o primeiro a aventurar-se para conquistar o trajeto. Além disso, ele era de extrema dificuldade e desafiador. Encontrar um corpo naquele local era afirmar que outras pessoas já tinham passado por ali antes, e só isso já era assustador.

Quando as informações sobre a autópsia foram divulgadas, em vez de esclarecimentos, mais dúvidas foram acrescentadas ao caso. Diferente do que os longos e lisos cabelos apontavam e também os sapatos encontrados no início da trilha, o corpo não era de uma mulher, e sim de um homem.

O Jornal O Globo, na época, publicou, abre aspas: “Visão de horror no Pão de Açúcar. Trata-se de um indivíduo de cor branca, com 35 anos presumíveis, de complexão bastante franzina, com um metro e sessenta de altura. Está em parte mumificado”.

A múmia apresentava um corpo magro e cabelos longos – Clube Excursionista Carioca

A matéria continuava com os detalhes do resultado da autópsia. Dizia que sua cavidade craniana e torácica abdominal estavam vazias. Tinha cabelos castanhos escuros, lisos e longos. A barba também era longa e castanha.

Um dos fatos que intrigou os médicos legistas e policiais era a ausência de qualquer fratura no corpo. Não tinha sinal de facada ou ainda tiro por bala de fogo. Nada, nenhum vestígio, indicava uma das primeiras suposições sobre o caso, que seria a ocultação do corpo por algum criminoso. Para deixar o mistério ainda mais difícil de ser solucionado, não havia nenhum documento de identificação junto ao defunto.

O corpo não era tão antigo. Os legistas estimaram que haviam seis meses desde a sua morte. Seu estado de mumificação foi explicado pelo mormaço e pela maresia que estava exposto, já que o Pão de Açúcar está ao lado do oceano. O sal do mar ajudou a desidratar o corpo e o transformar em uma múmia, conservando suas feições e detalhes mesmo após meses ali, pendurado sobre as rochas.

A repercussão dos jornais alertavam a população para que familiares ou amigos de pessoas desaparecidas, que as características se assemelhavam à múmia encontrada no Pão de Açúcar, fossem ao IML para reconhecer o corpo. Mas nunca ninguém apareceu.

Diante de tantas perguntas sem respostas há de se esperar diversas suposições sobre o caso.

Uma das hipóteses é que o corpo misterioso, com seus longos cabelos, seria de um andarilho ou de um travesti que foi parar ali por estar fugindo de alguém. Na época, travestis ou qualquer pessoa que saísse do padrão estabelecido como normal na sociedade, muitas vezes viviam em situações completamente marginalizadas, precisando se envolver em crimes ou prostituição para sobreviver.

Outra suposição é que a múmia possa ser de um aventureiro autônomo e destemido que ficou preso entre as rochas ao tentar escalar o paredão do morro sozinho. Sem conseguir sair, morreu entalado esperando ajuda.

Há ainda uma terceira hipótese. O corpo do Pão de Açúcar seria de um pescador e artesão português que segundo o historiador da Universidade do Rio de Janeiro, Milton Teixeira, morou em uma caverna na região na década de 40.

Além das dúvidas sobre a identificação do cadáver e como ele foi parar entre as fendas do cartão-postal do Rio de Janeiro, existe um outro mistério. Sem qualquer registro sobre o deslocamento do cadáver para um local apropriado após o insucesso do reconhecimento do corpo, não se sabe até hoje onde foi parar a múmia. Aparentemente, sem identificação, ela foi enterrada como indigente, não nos deixando qualquer chance de descobrir qual era o seu nome e o que aconteceu para ter tido aquele fim tão trágico.

Outras múmias misteriosas pelo mundo

Tantas perguntas sem respostas e suposições que rodeiam a Múmia do Pão de Açúcar colocam o caso na lista de histórias mais curiosas de múmias já encontradas no mundo. Essa lista traz outros casos interessantes e que suas descobertas revelaram peças importantes para ampliar nosso conhecimento sobre a história da humanidade. Vou compartilhar duas delas com você.

  • A múmia que grita
A múmia que grita – Wikimedia Commons

Em 1881 foi descoberta no Egito uma múmia de mais de três mil anos eternizada com uma expressão facial de total horror. Com a boca aberta e os músculos faciais tensos, o rosto do homem traz em sua fisionomia dor e espanto. É como se o corpo tivesse sido paralisado no exato instante em que estava dando um enorme grito, e assim ficou para sempre.

Passou mais de um século de total mistério. Não sabia-se nada sobre esse homem, do porquê de ser mumificado com tal expressão de desespero, algo completamente fora do comum comparado com as outras múmias do antigo Egito até hoje encontradas.

Foi em 2018 que cientistas conseguiram revelar parcialmente o caso. A múmia que grita pertencia ao príncipe Pentaur, herdeiro de um dos mais emblemáticos faraós egípcios, o Ramsés III.

Os estudiosos indicam que Pentaur havia armado um plano para matar seu pai e tomar o poder. Aparentemente ele conseguiu, mas pouco tempo depois o crime foi descoberto e o príncipe teria sido condenado à forca por ter matado o faraó. Mas, antes do julgamento ser cumprido, Pentaur teria tirado a própria vida. Só foi possível juntar essas peças do quebra-cabeça devido aos exames feitos na múmia e também a um manuscrito decifrado por especialistas que contava justamente essa história de traição entre pai e filho, que ficou conhecida como A Conspiração do Harém.

Mas ainda assim muitas questões estão sem respostas. Não há na múmia qualquer vestígio do fluido de embalsamamento usado pelos antigos egípcios para mumificar os corpos. Teria então o corpo do príncipe sido mumificado naturalmente? Sua expressão de horror ficou eternizada de forma natural após ter cometido suicídio ou foi colocada nele após sua morte?

  • A Senhora de Cao
A múmia da Senhora de Cao – Wikimedia Commons

A múmia de uma mulher foi descoberta em 2006 na região norte do Peru, no sítio arqueológico El Brujo. Pertencente à cultura Moche, anterior aos Incas, o corpo foi encontrado inteiro e bem preservado. Seu cabelo negro e comprido está dividido em duas longas tranças que chegam na altura da cintura, e mesmo após 1.700 anos da sua morte, é possível ver de forma nítida a sua pele completamente tatuada com serpentes, aranhas, formas geométricas e desenhos abstratos.

Enterrada a oito metros de profundidade, acompanhavam a múmia vários colares de ouro, pedras preciosas, coroas de cobre e armas de guerra, itens típicos de serem enterrados juntos a líderes políticos ou religiosos nas comunidades antigas.

Até então acreditava-se que mulheres não poderiam ocupar cargos de liderança na América do Sul do passado, mas a descoberta obrigou historiadores a rever seus conhecimentos sobre as estruturas de poder desses povos.

Com morte precoce, aos aproximadamente 25 anos e decorrente, provavelmente, por complicações no parto, a Senhora de Cao teria sido então uma das mulheres mais poderosas do Peru pré-hispânico.

Cinco anos depois

Aquela trilha iniciada em 1949, que tinha como objetivo abrir uma quarta via de acesso ao topo do Pão de Açúcar, foi concluída apenas em 1954, cinco anos após o grupo fazer a primeira investida e precisar desistir do grande objetivo ao se deparar com o inimaginável, um cadáver.

Por anos ela foi considerada a mais difícil escalada do montanhismo brasileiro. A rota foi batizada de chaminé Gallotti, em homenagem ao senador Francisco Benjamin Gallotti, que apoiava o grupo de escaladores cariocas.

 Intrépidos montanhistas anos depois – Acervo de Tadeusz Hollup/BBC

Por isso, o caso também ficou conhecido como ‘a múmia da Gallotti’, que sete décadas depois de ser encontrada, segue sem solução.

De quem era o corpo da múmia do Pão de Açúcar? Como ele foi parar em um lugar tão inacessível e até então inexplorado? Foi crime, suicídio ou acidente? São respostas que talvez nunca saberemos.

Mas e você? Qual sua teoria? Nós fizemos um Episódio muito legal junto com o professor de historia brasileiro Vítor Soares sobre esse acontecimento em nosso Podcast : Espaço Indecifrável, confere aqui em baixo que ficou muito bom! 

Quem é Vítor Soares?

Formado em História pela Universidade de Barra Mansa. Professor de História na cidade de Angra dos Reis. Criador e Host do podcast História em Meia Hora.


3 respostas para “A múmia do Pão de Açúcar”

  1. Avatar de Karim Matos
    Karim Matos

    Obrigado pelo seu comentário!

  2. Avatar de Roberto Carvalho
    Roberto Carvalho

    Tudo indica que nao foi um crime. Se alguem quisesse se desfazer de um cadaver bastaria joga-lo no mar ao lado do Pao de Acucar ao inves de carrega-lo a um lugar de dificil acesso ate para alpinistas. E para matar alguem, nao seria necessario se embrenhar por uma area perigosa. Provavelmente, um sujeito bebado, vestido de mulher (o carnaval foi por volta da ocasiao que o sujeito teria morrido, meses antes de ser encontrado) resolveu seguir aquele caminho ate ficar preso entre as rochas.

  3. Avatar de Ryane Coutinho
    Ryane Coutinho

    Nossa, essa história é maluca demais! Roupas e sapatos de mulher bem, eu posso estar mto enganada claro mas pra mim, esse rapaz provavelmente era trans, sofria de depressão por conta disso e viu alí uma forma de acabar com seu sofrimento. Foi até a pedra a escalou e se matou vestido de mulher.